Tratado da OMS não fere soberania dos países e busca melhorar resposta a pandemiasReprodução/Projeto Comprova

O tratado da Organização Mundial da Saúde para situações pandêmicas foi proposto pela primeira vez em 2021 no momento em que o mundo vivia os efeitos da covid-19. As negociações entraram na nona rodada em março deste ano e há previsão de votação do texto em maio, apesar de os países-membros não mostrarem consenso sobre diversos pontos. O documento traça orientações para crises sanitárias com o objetivo principal de reduzir desigualdades na resposta das nações, como distribuição de vacinas e remédios. O tratado funciona como um guia e não fere a soberania dos países, diferentemente do que sugerem posts que circulam nas redes sociais.
Conteúdo investigado: Publicação em rede social traz artigo intitulado “Faltam dois meses para o Tratado Pandêmico da OMS ser assinado pelos 194 países membros mas antes a OMS quer combater a desinformação e as teorias da conspiração”.

Onde foi publicado: Telegram.
Contextualizando: Representantes de 194 nações vêm discutindo há três anos mecanismos do tratado proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para aprimorar respostas a situações pandêmicas. O documento traz onze premissas para a elaboração do acordo, admitindo, por exemplo, as desigualdades regionais dos sistemas de saúde e reafirmando a soberania dos países para controles biológicos. “A Organização Mundial da Saúde é fundamental para fortalecer a prevenção da pandemia, preparação e resposta, pois é a autoridade dirigente e coordenadora do trabalho internacional de saúde”, diz trecho do rascunho mais recente do tratado, divulgado em março deste ano.
Ao contrário do que posts em redes sociais vêm alegando, o acordo, ainda em elaboração, não se sobrepõe às decisões tomadas pelos governos. Em fevereiro, o diretor-geral da organização, Tedros Adhanom, se manifestou publicamente sobre informações falsas que circulam na internet a respeito das negociações e reiterou que o tratado “não dá à OMS qualquer poder soberano sobre qualquer país”. “A nossa função é aconselhar”, disse Adhanom. Em outro momento, ele reafirmou que a corrente de “notícias falsas, mentiras e teorias da conspiração” estava prejudicando o andamento do tratado. A expectativa é que o texto seja votado em maio, durante a 77ª edição da Assembleia Mundial da Saúde, realizada anualmente em Genebra, na Suíça.
No fim de 2022, um texto investigado pelo Comprova espalhou uma teoria conspiratória de que o acordo substituiria “leis nacionais e estaduais” e daria à entidade o poder de exigir vacinações obrigatórias, “acabando com a democracia”. À época, a OMS já havia realizado reuniões no chamado Intergovernmental Negotiating Body (INB) (Órgão Intergovernamental de Negociação, em português), que foi criado justamente para reunir representantes dos países-membros e discutir o acordo.

“Não há como usurpar a soberania, porque todo tratado internacional depende da anuência dos Estados. Depende de os Estados aderirem a esse tratado voluntariamente. Cada Estado só vai fazer isso se assim entender por bem e, depois, ratificá-lo dentro do seu ordenamento jurídico”, explicou ao Comprova a doutora em Direito Internacional e professora na Universidade Mackenzie Helisane Mahlke. A especialista lembra, ainda, que a OMS é uma agência da ONU e não atua de forma autônoma.

Posts nas redes sociais também têm citado, de forma irônica, a intenção da entidade de combater teorias conspiratórias em situações de crises sanitárias. O artigo 18 do tratado prevê quatro regras para evitar desinformação em momentos de emergência em saúde pública, mas não dá detalhes como serão implementadas. São elas:

1 – Cada parte promoverá o acesso oportuno a informações confiáveis e baseadas em evidências sobre pandemias e suas causas, efeitos e motivadores, com o objetivo de combater e abordar a desinformação, especialmente através da comunicação de riscos e do envolvimento eficaz a nível comunitário;

2. As partes promoverão e/ou conduzirão, conforme apropriado, pesquisas e devem comunicar políticas sobre os fatores que dificultam ou fortalecem a adesão às medidas sociais e de saúde pública em uma pandemia, bem como a confiança em instituições e agências de ciência e saúde pública;

3. As partes promoverão e aplicarão abordagens baseadas na ciência e em evidências para medidas eficazes e avaliação oportuna de riscos e comunicações públicas culturalmente apropriadas;

4. As partes trocarão informações e cooperarão, em conformidade com a legislação nacional, em prevenir a desinformação e esforçar-se por desenvolver melhores práticas para aumentar a precisão e confiabilidade das comunicações de crise.

Na internet, usuários vêm atacando a Organização Mundial da Saúde alegando um suposto poder que o tratado colocaria acima das liberdades dos cidadãos, como mostrou checagem da AFP. “Usa-se o pretexto de falar de liberdades individuais de modo truncado para tratar de uma questão que é liberdade para se ter saúde, a integridade mantida”, disse ao Comprova Sérgio Zanetta, médico sanitarista e professor de Saúde Pública e Epidemiologia do Centro Universitário São Camilo.

O especialista acrescenta que a OMS já dispõe de um código sanitário internacional que possibilitou, por exemplo, o controle do ebola na África subsaariana. “É uma doença hemorrágica febril muito grave, com alta letalidade, e que se transmite muito rapidamente. Em uma situação como essa, a OMS coopera com o país local para que esse país possa conter a transmissão no seu território, ajudando a impedir que a doença se espalhe”, explica o professor.
Dificuldades nas negociações
O rascunho do tratado vem passando por diversas alterações por falta de consenso entre as autoridades. Um dos pontos ainda em discussão é a troca de informações entre as equipes sanitárias dos países sobre patógenos com potencial para gerar crises globais, como foi o caso da covid-19. A Suíça, por exemplo, que abriga grandes farmacêuticas, não concorda com o termo. Já os Estados Unidos vêm se opondo à dispensa de propriedade intelectual das vacinas.

“Pelo que pude analisar do teor do tratado, ainda é um documento fraco no que diz respeito a exigir a cooperação entre os Estados para a distribuição das vacinas, por exemplo. O acordo busca alternativas, mas não é tão claro. Além disso, coloca a Organização Mundial da Saúde no papel dela, de orientar condutas para garantir a segurança das pessoas”, avaliou Mahlke.

O artigo 12 cita de maneira breve a necessidade de auxílio a países com menos recursos. “Durante uma pandemia, cada país, em condições de fazê-lo, deverá, dentro dos recursos disponíveis e sujeito de acordo com as leis aplicáveis e em conformidade com o Artigo 13, reservar uma parte de sua aquisição total de produtos relevantes diagnósticos, terapêuticas ou vacinas em tempo hábil para uso em países que enfrentam desafios no cumprimento necessidades de saúde pública e procura de diagnósticos, terapêuticas ou vacinas relevantes.”

No início deste mês, a conceituada revista científica The Lancet publicou um editorial com duras críticas ao termo que concede à Organização Mundial da Saúde acesso a apenas 20% de produtos relacionados a uma pandemia para distribuir globalmente. A outra parcela, de 80%, ficaria a cargo da comunidade internacional, incluindo remédios e vacinas. “Isto não é apenas vergonhoso, injusto e desigual, é também ignorante. Criar e aderir a um conjunto de termos fortes e verdadeiramente equitativos sobre acesso e partilha de benefícios não é um ato de bondade ou caridade. É um ato de ciência, um ato de segurança e um ato de interesse próprio. Ainda há tempo para corrigir esse erro de julgamento”, diz o artigo.
Como o conteúdo pode ser interpretado fora do contexto original: O tratado da OMS para situações pandêmicas vem sendo alvo de desinformação desde que foi anunciado pela organização, mesmo quando sequer havia um rascunho do acordo. Os desinformadores alegam que a entidade busca exercer poderes dentro dos países que negariam a liberdade dos indivíduos, mas, além de não ser esse o papel da agência, que responde à ONU, a legislação internacional não o permitiria. Sem contexto, o conteúdo pode levar o leitor a acreditar que há um plano para tirar a soberania do país em que vive e excluindo suas liberdades, descredibilizando uma das organizações internacionais mais respeitadas no mundo.
O que diz o responsável pela publicação: A reportagem entrou em contato com a responsável pela divulgação do artigo, mas não recebeu resposta até agora. Ela já publicou outros textos que também foram alvo de investigações do Comprova e que podem ser vistos aqui e aqui.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. Até o dia 26 de março, a publicação somava 6,3 mil visualizações.

Como verificamos: Iniciamos a verificação buscando informações sobre o tratado no site da OMS, que disponibiliza o passo a passo das negociações para todo o público, incluindo vídeos das sessões. Depois, buscamos notícias sobre o assunto em portais internacionais e em outras agências de checagens. Por último, entramos em contato com dois especialistas para analisar os fatos.
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.

Outras checagens sobre o tema: Textos com desinformação sobre o tratado da OMS vêm sendo alvo de investigações desde 2021, quando foi anunciado. O assunto já foi verificado pelo Comprova, pela AFP, Reuters e AP News.