Cauby Peixoto em apresentação na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em 1957Acervo pessoal / Lucas Antônio Correa

Rio - Celebrado por sua aveludada voz que alcançava notas graves bem definidas, seus figurinos exuberantes, compostos por roupas bordadas e tecidos brilhantes e, a partir dos anos 80, peruca de cachos, Cauby Peixoto (1931–2016) será declarado Patrimônio Cultural Carioca, por decreto oficial, com cerimônia e exposição de trajes do cantor. A iniciativa está alinhada ao desejo de Cauby de ter a sua história preservada.
A solenidade aconteceu na última terça-feira (30), às 18h, no Palácio da Cidade, em Botafogo, na Zona Sul. A mostra com seis figurinos completos do cantor, incluindo os que eram rasgados pelas fãs, foi abrigada no saguão do espaço. Dalmo Medeiros, 72, sobrinho de Cauby, em entrevista para o DIA, garante que Di Veras, empresário do cantor, alinhava as barras dos paletós de Cauby de modo que se desfizessem com facilidade quando as fãs mais atiradas as puxassem.
 A ideia da homenagem póstuma partiu do fã-clube nacional do cantor, que reúne integrantes dos 20 aos 80 anos, e foi abraçada pela Prefeitura do Rio e o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). "Cauby Peixoto é um dos grandes artistas brasileiros. Elevou a nossa arte e divulgou o país lá fora. A homenagem é mais do que merecida", avalia Laura Di Blasi, presidente do IRPH. 
Para os admiradores e familiares do artista, a importância do tributo está em tornar Cauby eterno: "O nosso maior medo é que ele caia no esquecimento. Ele teve um grande estrelado nos anos 50 e faleceu na fama, mais de 50 anos depois. Isso demonstra o quanto ele era querido e assim deve permanecer", afirma o fã Victor Betacini, 25, empresário.
O jovem é colecionador de itens de Cauby desde os 12. Victor possui o maior acervo já existente do cantor de timbre inigualável e gestos inflamados. Ele mora em São Carlos, cidade do interior do estado de São Paulo, onde mantém uma casa com diversas antiguidades, entre elas mais de 1.500 peças relacionadas ao artista. Há desde discos compactos nacionais e importados, fitas cassetes e DVDs a livros e revistas. Só os álbuns nacionais são mais de 50, de 33 e 45 rotações, enquanto ele possui 66 discos de 78 rotações. Estes são os discos mais especiais e raros, verdadeiros tesouros para os colecionadores. Um dos mais caros foi o "Saia Branca", de 1951, a primeira gravação de Cauby. Victor conta que pagou R$ 3 mil pela preciosidade. Já o LP "Cauby! Cauby!", de 1980, com composições inéditas de Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994), Caetano Veloso, Jorge Ben Jor e Roberto Carlos, foi abocanhado por mais de R$ 5 mil, na Colômbia.
"Um dos motivos de eu colecionar tudo de Cauby é que ele sempre sonhou em ter um museu, uma espécie de acervo em memória dele. Como ele faleceu antes de o seu sonho virar realidade, eu reúno esses itens para um dia fazer uma exposição em homenagem ao cantor. Acho válido os fãs preservarem a memória e imagem dele", adianta.
E o motivo de ser um grande fã, desde a infância, de um cantor considerado ultrapassado e fora de moda pelas novas gerações? "Cauby dedicava-se muito ao domínio de voz que ele possuía e eu admiro essa disciplina. Eu também sempre gostei de cantores da velha guarda, como Silvio Caldas, e ao ouvir o repertório dos anos 50 do Cauby, percebi a importância que ele teve na Música Popular Brasileira. Ele participou de muitos movimentos musicais, como o início da bossa nova e foi o primeiro cantor brasileiro a gravar rock. Ele era um artista completo, cantava em nove idiomas, gravou discos em mais de 10 países. Comecei a colecionar pela versatilidade dele somado ao potente tom de voz que ele tem".
Magali Velasco, 80, sobrinha de Cauby, é a proprietária dos trajes remanescentes do tio. As peças foram doadas pelo cantor especialmente para ela. Pelas suas contas, possui cerca de 30 trajes completos. São desta coletânea os figurinos que estarão expostos no Palácio da Cidade. A ideia é ceder as roupas para a nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS), na orla de Copacabana, quando as obras forem finalizadas.
Das boas lembranças com o tio, a quem era bastante apegada, Dona Magali destaca quando Cauby a apresentou ao seu futuro marido. Eles estavam na casa do artista, e aquele que seria o seu parceiro de vida era amigo do tio. Paqueraram-se, namoraram, casaram e tiveram uma vida feliz com dois filhos. Como ele era espanhol, sempre que Cauby avistava o casal em shows, apresentava uma canção na língua nativa do amigo, com os olhos grudados neles.
Logo após o casamento, Maga, como era chamava por Cauby, sofreu um acidente de carro e ficou semanas internada em um hospital. Quando o tio foi visitá-la, conseguiu permanecer apenas 5 minutos no quarto, tempo que restou após os funcionários do hospital o tietarem. Até a cozinha do lugar Cauby conheceu, levado por um fã.
"Eu fico muito feliz com o reconhecimento de Cauby como Patrimônio Cultural Carioca, porque estava faltando um algo especialmente para ele. Sempre corri atrás e vou continuar correndo de honrarias que levem o nome dele, para ele ficar eternizado e as pessoas lembrarem para sempre do meu tio", afirmou.
Um dos últimos grandes representantes da era do rádio, o período entre 1930 e 1950 que consolidou a existência de uma música popular brasileira, Cauby possuía estilo grandiloquente de interpretação e voz de timbre inigualável que poupava com sacrifícios e rituais bem específicos. Dalmo recorda com graça de Cauby e sua mistura para aveludar a voz. A cena é fundamental em suas memórias de infância: "Em um copo de licor, ele quebrava um ovo, ali na beirada do copo, misturava o ingrediente com limão e vinagre para ressonar os graves e agudos". Em seguida, Cauby se dirigia para o quarto da mãe, avó de Dalmo, onde vestia um dos trajes, abria o espelho do guarda-roupa, colocava na vitrola um disco geralmente em inglês, para treinar o vocal e o gestual e estudar a pronúncia: “Ele era um profissional fantástico, tinha um cuidado maravilhoso com a voz. Antes de shows, costumava ficar o dia todo calado para preservar".
Outra situação corriqueira cravada na mente de Dalmo eram os cantos à capela que Cauby executava da janela de sua irmã, em Copacabana, Zona Sul. Após a morte de sua mãe, a sua irmã Indiara passou a ser a anfitriã e recebia para as comemorações de aniversários dos parentes. Em uma dessas reuniões, incentivou Cauby a abrir a janela e colocar o vozeirão ao vento. Certa vez, a polícia teve que intervir para dispersar o tumulto causado pelos fãs na Rua Miguel Lemos, onde ficava o apartamento da família.
Cássio Francisco, 41, bacharel em filosofia, não assistiu aos shows de Cauby na janela de Copacabana, mas também teve momentos de apresentações mais íntimas no Bar Brahma, em São Paulo, onde Cauby, no fim da carreira, se apresentava às segundas-feiras para uma audiência de cerca de 200 pessoas. O bar, localizado no cruzamento das avenidas Ipiranga com São João, foi destino do morador de Campinas por, pelo menos, 17 vezes. Em todas elas, Cássio ficou encantado com a voz e a presença de Cauby: "Ele não fazia uso de playback. Em um dos shows, cantou 22 músicas sem beber um gole água, demonstrando profissionalismo e total controle do diafragma. Isso, para mim, é muito impressionante. Ele não era como os cantores de hoje em dia, que têm vários recursos para ter a voz moldada", compara. "Enquanto eu tiver vida eu vou ouvir Cauby e vou falar do Cauby", completa.
Cássio costumava ir ao camarim nos shows no Bar Brahma. Ele confidencia que a então empresária de Cauby, Nancy Lara, deixava-o entrar por saber que ele era discreto. Enquanto os demais fãs brigavam na porta do camarim, Cássio entrava se dizendo jornalista ou segurança do cantor, distribuía flores e chocolates para Cauby e para a equipe, e falava muito pouco para deixar o seu ídolo descansar a voz para a apresentação: "Ele era uma pessoa de poucas palavras no camarim, mais ouvia do que falava. Porém, era de uma gentileza e carinho impressionantes. Ele sempre autografava fotos e CDs que eu levava", afirma.
Quando o artista morreu, em 2016, Cássio fez um discurso em homenagem a ele na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde foi velado. Escolhido pelos fãs, ele também falará na solenidade no Rio, para lembrar a trajetória e legado de Cauby e agradecer aos admiradores presentes, pois, segundo ele, "quem faz o cantor são os fãs".
E de fã Cauby está bem servido. O presidente do fã-clube, o estudante Lucas Antônio Correa, tem apenas 22 anos e uma meta: imortalizar o mito. Atualmente, ele se dedica ao trabalho virtual de digitalização do acervo fotográfico, entrevistas, participação de Cauby em programas de televisão. Ele está desenvolvendo um site para disponibilizar ao público o material.
Foi Lucas quem reativou o fã clube do Cauby em 2013, quando tinha apenas 12 anos. E foi Lucas também quem entrou em contato com a prefeitura para solicitar o título de patrimônio cultural para Cauby: "O Brasil é um país sem memória, então este é um trabalho de resistência cultural. O reconhecimento é fundamental, porque Cauby foi um dos primeiros ídolos de massa do país, um marco. Ele foi lançado artisticamente nos moldes do Frank Sinatra, inclusive, revistas da época comparavam-no com Sinatra e Elvis, no final dos anos 40 e início de 50. Ele foi projetado pela euforia dos fãs", afirma.
Para 2031, centenário do artista, Lucas planeja uma grande exposição itinerante com todo o seu vasto figurino (em torno de 300 peças) e a publicação de uma fotobiografia. "Sou um personagem, uma mulher no palco. (...) Acho que sempre fui assim, porque quando estou cantando não sei mais de mim", disse em sua biografia "Bastidores - 50 Anos da Voz e do Mito" (2001), de Rodrigo Faour.