O Brasil conhecerá dentro de poucas horas o nome do presidente que o governará nos próximos anos — e a sensação para a maioria dos eleitores é de alívio. Independente de quem vença ou de quem saia derrotado da disputa, a esperança é a de que a contagem dos votos signifique o fim de um processo marcado pela troca de acusações e pela pobreza do debate. Pelo que se ouviu este ano e especialmente na campanha do segundo turno, um se limitou dizer que sabia o que o outro fez no verão passado.
Nunca se viu neste país uma campanha eleitoral tão pobre como a deste ano. Todo o debate se resumiu à troca de acusações entre os dois candidatos e à promessa de programas assistenciais que, por mais necessários que sejam, dependem do crescimento da economia para não acabar com o que resta de equilíbrio das finanças públicas. Pouco se falou do que interessa: o futuro. Não deveria ter sido assim, mas foi o que tivemos.
Não serve como argumento, neste caso, dizer que os dois candidatos são conhecidos e já mostraram do que são capazes em suas passagens pela presidência da República. Os problemas atuais são muito diferentes daqueles que o Brasil tinha em 2003, quando Lula assumiu pela primeira vez a presidência. São diferentes até mesmo dos de 2019, quando Bolsonaro tomou posse. Não se resolvem problemas novos com receitas antigas. É preciso renovar o repertório de soluções e foi justamente isso que as duas campanhas ficaram devendo ao eleitor.
A impressão que se teve foi a de que o debate foi se tornando mais pobre na medida em que a data da eleição se aproximava. A semana anterior ao pleito, ao invés de ser usada pelos candidatos para reforçar junto ao eleitor os pontos mais importantes de seus projetos de governo, temas sem relação direta com o modelo de gestão que o país deverá ter no próximo mandato dominaram o debate.
O barulho dos tiros disparados e das granadas atiradas pelo ex-deputado Roberto Jefferson contra os policiais federais que foram à sua casa prendê-lo por ordem judicial foram ouvidos a semana inteira. Outro assunto que dominou a pauta foram as acusações da campanha do candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), contra o que ela considera favorecimento do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Ninguém está afirmando que esses temas não tenham relevância nem que a presença deles no debate não possa ter influenciado os resultados das urnas que serão apuradas no final do dia de hoje. Eles têm muita influência, sim, e é justamente aí que está o problema. Embora esses assuntos em nada contribuíram para mostrar o que cada candidato pretende fazer no exercício do poder, eles ajudaram a manter os ânimos dos apoiadores de um e de outro inflamados até o fim da disputa. Por essas e outras razões, tudo indica que o clima político seguirá quente e o dia de amanhã, 31 de outubro, não marcará o fim do ciclo eleitoral de 2022, mas o início da disputa de 2026.

VALE TUDO
Quem acompanha esta coluna é testemunha do esforço feito desde o início do ano para tentar elevar o nível do debate e procurar estabelecer com o eleitor um diálogo capaz de ajudá-lo a decidir seu voto com base em seus interesses, suas conveniências e suas preferências ideológicas. Sem jamais tomar partido, procurou-se traçar aqui uma linha de raciocínio amparada por princípios que, a despeito de parecerem ingênuos, como a própria coluna admitiu, deveriam ser utilizados pelo eleitor como uma espécie de antídoto contra os deslizes de uma campanha que, muitas vezes, pareceu disputada num ringue de Vale Tudo.
Neste ponto, um alerta! Não é recomendável que a preferência por um ou pelo outro candidato nos impeça de ver que os erros de conduta afetaram as duas campanhas. Dizer que apenas os aliados de Bolsonaro apelaram para o recurso da mentira, como acusam os lulistas, é o mesmo que afirmar que só o ex-presidente Lula distorceu fatos e estatísticas em seu benefício, como dizem os bolsonaristas. Como sempre acontece nas campanhas, os dois lados exageraram nas tintas ao criticar o adversário e douraram a pílula ao falar de si mesmos. Isso é do jogo eleitoral. Este ano, porém, o apelo a esse tipo de recurso parece ter ultrapassado os limites aceitáveis.
É aí que entra o eleitor comum — aquele que não tem compromisso ideológico prévio com nenhum dos dois lados, faz sua escolha ao longo da campanha e, no final, é quem decide a disputa. Cabe a ele se inteirar dos fatos, desprezar os exageros, separar o joio do trigo e formar sua opinião. Aos políticos, deveria caber o papel de facilitar, e não de dificultar essa escolha.
Apoiados em sua própria história e nos compromissos assumidos com a sociedade ao longo de sua trajetória, os políticos deveriam ter clareza na hora de reunir e apresentar as propostas, as informações, os dados e os argumentos que levam o eleitor a tomar sua decisão. A relação entre o eleitor e o político que ele apoia é, ou pelo menos deveria ser, de confiança.

CONVENIÊNCIA E COERÊNCIA
Um dos ingredientes que ajudam o candidato a ganhar a confiança do eleitor é, ou também deveria ser, a coerência política. Este tema não é novo nesta coluna. Não custa lembrar uma crítica publicada neste espaço, na edição de 29 de maio deste ano, aos políticos que “têm se movido mais ao sabor das próprias conveniências do que ao rigor da coerência”. Em nome desse princípio, todo político consciente deveria assumir consigo mesmo o compromisso de jamais tentar fazer o eleitor de bobo, defendendo hoje, sem apresentar qualquer justificativa consistente, uma posição contrária àquela que defendia ontem.
Tais críticas nesta eleição se aplicam em especial a políticos de passado antilulista — como são os casos da senadora Simone Tebet e do ex-ministro Ciro Gomes — que, diante do favoritismo que o petista consolidou ao longo da campanha do primeiro turno, não titubearam ao apoiá-lo no segundo turno. Este tema já foi tratado à exaustão neste espaço em edições anteriores e parecia esgotado. Por que voltar a ele agora que o processo está praticamente concluído?
Por uma questão muito simples: é preciso observar os erros de hoje para perseguir os acertos amanhã. Essas mudanças de posição de última hora, a despeito de serem apresentadas como uma escolha baseada na comparação entre os candidatos que restaram na raia, em nada contribuíram para o amadurecimento do processo eleitoral. Defender e apoiar hoje o político que ontem era chamado de “ladrão” por uns ou de “miliciano” por outros diz mais sobre a falta de coerência de quem mudou de ideia do que sobre a conduta do próprio candidato. E, ao invés de ajudar a melhorar do cenário, contribui para aumentar a repulsa do eleitor pela política.

CAMPANHA PERMANENTE
Seja como for, todos os votos estarão nas urnas ao longo do dia de hoje e o resultado será conhecido dentro de poucas horas. Lula e Bolsonaro chegaram à reta final da campanha praticamente empatados e, embora as pesquisas da reta final confiram um ligeiro favoritismo ao petista, é pouco provável que o vencedor consiga abrir uma frente robusta de votos sobre o segundo colocado.
Diante do acirramento de ânimos que se vê nas ruas, qualquer vantagem para um ou para outro será insuficiente para evitar o “terceiro turno” — ou seja, o prosseguimento da troca de acusações e do clima de disputa mesmo após a divulgação e a proclamação dos resultados. Isso, convenhamos, será péssimo para o país. Esse é o ponto que interessa. O Brasil tem problemas sérios demais para que os políticos e, principalmente, os militantes que os apoiam com mais ardor, percam tempo alimentando uma polarização que, até agora, só gerou benefícios para eles — e não para o país.
O problema do Brasil não é ter um governo mais à esquerda ou mais à direita. O verdadeiro problema é que ninguém se mostra disposto a promover as reformas estruturais no campo da política e da economia. Essas reformas são necessárias para que o Estado tenha recursos suficientes para implementar, dentro de um ambiente democrático, as políticas que garantirão o crescimento da economia e assegurarão o bem estar da sociedade.

LÓGICA POPULISTA
O Brasil precisa crescer — sob pena de negar às novas gerações as possibilidades de um presente digno e de um futuro promissor. Para isso, será necessário por o dedo na ferida e tomar providências que, mesmo que enfrentem resistências da máquina estatal, consigam preparar o ambiente para o crescimento desejado. Não é mais admissível que os governantes continuem virando as costas para os vícios de um Estado habituado a criar despesas e mais despesas sem saber se terá dinheiro para pagá-las.
A verdade é que o Brasil se tornou refém de uma lógica populista perversa, pela qual não é o Estado que existe para servir a sociedade. A sociedade é que existe para sustentar um Estado cada vez mais inchado e ineficiente. Hoje, de tudo o que o Estado brasileiro arrecada, mais de 95% são destinados a pagar a folha do funcionalismo e a cobrir outras despesas de custeio da máquina pública. Os menos de 5% que restam são destinados a construir novos hospitais, novas escolas, novas pontes e novas avenidas. Desse naco cada vez menor deve sair, também, o dinheiro para os investimentos em segurança e em políticas afirmativas de inclusão social.
Por mais grave que seja o problema da voracidade da máquina pública e da falta de dinheiro para o financiamento de políticas públicas voltadas para a população, esse tema foi praticamente ignorado na campanha. Nenhum dos dois candidatos favoritos apresentou em qualquer momento da campanha uma proposta consistente de reforma política, de reforma administrativa ou de um modelo fiscal capaz de suportar as exigências de uma sociedade cada vez mais carente de boas políticas públicas.
Por mais enfadonha que pareça esse assunto, ele precisa ser trazido para o centro do debate — e a sociedade precisa ser chamada a discutir se deseja ver o seu dinheiro usado para arcar com os aumentos do funcionalismo público; se gostaria que seus impostos bancassem emendas do “Orçamento Secreto”; ou se a prioridade é a construção de um hospital, de uma penitenciária ou de uma escola. Isso é o que de fato interessa. Mas, com a polarização que tomou conta do ambiente, fica cada vez mais difícil enxergar essa realidade.